Democracia: passado e presente


Democracia

O termo democracia é de origem grega e significa “governo do demos”, palavra de tradução ambígua entre “o povo” ou “a plebe”. A ideia geral é a de que o poder está, em última instância, nas mãos de toda a população adulta e livre, de forma que os interesses da coletividade, ou o bem comum, são trazidos à pauta das decisões políticas.
Considerada por Aristóteles a melhor entre as piores formas de governo (ARISTÓTELES, Política, liv. IV, cap. 2, 1289b), a democracia constitui um dos mais vagos termos da política contemporânea. Estados tão diferentes como os EUA e o Timor Leste, a República Tcheca, Chipre, Indonésia ou Brasil, com particularidades históricas e realidades tão variadas, se apresentam como países democráticos.
De fato, a democracia comporta uma variedade de aspectos formais (como a escolha dos governantes, por exemplo), de sentidos conceituais (como a democracia direta ou a representativa, idem) e dimensões sociais (entre as quais figuram a democracia econômica e a democracia racial, idem ibidem), cuja síntese é não apenas difícil, mas de utilidade duvidosa.
Na teoria política, confluem três tradições históricas: a aristotélica, que define o regime a partir do exercício da soberania, fazendo uso de um critério numérico (”um monarca”, “poucos escolhidos” ou “a maioria do povo”) (veja aqui mais sobre a democracia para Aristóteles); a tradição medieval (romana), que elabora a teoria da soberania popular e a distinção entre a titularidade e o exercício do poder, inserindo a representatividade do poder popular, ressignificando a democracia como o poder exercido no interesse da maioria; e a teoria moderna que, desde Maquiavel e Montesquieu, a identifica como uma das formas de República, dando ênfase ao aspecto antidespótico, policrático do regime. É na obra de Rousseau que os ideais republicanos e democráticos coincidem definitivamente: à formação da vontade geral, o consenso, e ao poder de fazer as leis somam-se o ideal igualitário que acompanhou a história das repúblicas, em contraposição aos regimes monárquicos ou despóticos.
O debate sobre a democracia esbarrou sempre no problema de como proceder à escolha justa dos melhores cidadãos para exercer o comando da sociedade. O sucesso do republicanismo norte-americano, a partir da Revolução de 1776, supera em parte esse dilema, atribuindo ao sufrágio universal a forma supostamente mais legítima de escolher, entre cidadãos livres, aqueles que deveriam exercer o poder em nome do conjunto da sociedade.
Norberto Bobbio ensina que, ao longo de todo o século XIX, a discussão em torno da democracia se desenvolve pelo seu confronto com as doutrinas políticas dominantes à época, o liberalismo de um lado e o socialismo de outro. O liberalismo, por um lado, consagra o direito de participação política, como parte do conjunto de direitos individuais adquiridos no processo de transformação do Estado moderno (direitos econômicos, liberdades de pensamento, de religião, de reunião, etc). Note que a participação política, no liberalismo, é redefinida como instrumento de defesa da determinação autônoma do indivíduo, ou seja, como manifestação da vontade individual que, para além do direito de exprimir a sua opinião, reunir-se ou associar-se para influir na política, compreende o direito de eleger representantes e de ser eleito. Segundo Bobbio, esses direitos se desenvolveram em duas direções: no alargamento gradual do direito ao voto e na multiplicação dos órgãos representativos, sejam espacialmente (poder local) ou conforme a divisão de competências ou poderes (executivos, legislativos ou judiciários). (Dica: Se você se interessou pelo tema da democracia liberal, não deixa de ler “A democracia na América”, de Alexis de Tocqueville)
No socialismo, por outro lado, o sufrágio universal é o ponto de partida da democracia, pressuposto que permite o aprofundamento do processo de democratização do Estado, que envolve a retomada da democracia direta (crítica à representação política), e a ampliação do conceito de tomada de decisões coletivas aos aspectos econômicos da sociedade (passagem do autogoverno à autogestão), o que implica também a refundição das competências (executiva, legislativa e judiciária), visando, em última instância, à superação do Estado e à descentralização do poder (na forma de conselhos, por exemplo), expressão da emancipação social.
Isso posto, devemos concluir que a democracia é compatível com doutrinas de variados conteúdos ideológicos e que seu teor está mais bem representado por um conjunto de regras visando à constituição do governo e ao processo de tomada de decisão; esse sistema político é legitimado pela maioria dos cidadãos, que têm o direito de, em maior ou menor medida, interferir naqueles assuntos que afetam o conjunto da sociedade.
Mais uma vez, precisamos ter em mente que subjaz a esse conceito a ideia de igualdade entre os indivíduos que compõem essa “maioria”, o que deve sempre ser relativizado na análise de realidades concretas. Por isso, o termo democracia se torna incrivelmente mais inteligível quando qualificado por outro adjetivo com o qual esteja associado, como, por exemplo, “democracia participativa”, “democracia liberal”, “social-democracia”, etc, cada qual com suas particularidades.
Existem, no entanto, boas análises de traços gerais da democracia: em um excelente artigo publicado numa coletânea intitulada O futuro da democracia, Norberto Bobbio chama-a de “regime do poder visível”, explorando a característica essencialmente pública, segundo a qual todas as decisões e, de modo mais geral, todos os atos dos governantes devam ser conhecidos pelo povo soberano. Esse traço, segundo o professor italiano, sempre foi um dos eixos do regime, tendo estado presente na forma direta que marcou a democracia clássica (”nas reuniões de cidadãos em local público, com objetivo de ouvir e apresentar propostas, denunciar abusos ou pronunciar acusações, levantando as mãos”), e tendo permanecido nas formas posteriores que a democracia assumiu ao longo da história. Bobbio cita uma obra datada da época da Revolução Francesa (influenciada em muito pela democracia grega), o Catecismo republicano, de Michele Natale, escrito em 1799, em que já ficava claro o caráter público como regra da democracia, e a exceção, o segredo, apenas justificáveis como medidas de segurança e por tempo limitado.
Tema hoje de grande relevância para a política, a accountability pode ser considerada a representante contemporânea desse critério de visibilidade, ou publicidade, do poder, que afeta diretamente a confiança da população nas instituições políticas.
DEMOCRACIA HOJE - A conceituada revista britânica The Economist desenvolve um índice mundial de democracia, baseada em cinco critérios-chave: processo eleitoral, funcionamento do governo, participação popular, cultura política e liberdades civis. A partir desses critérios, ela avalia cerca de 60 indicadores (extensão do voto e processo eleitoral, confiança da população nas instituições e nos governantes, impactos das crises econômicas na política, entre outros), na realidade de 167 países, e os classifica, conforme a média que têm, em quatro categorias de regimes políticos: democracia plena, democracia falha, regime híbrido e regime autoritário.
Com duas edições publicadas, a primeira em 2006 e a segunda em 2008, a Unidade de Inteligência da The Economist conclui que houve poucas mudanças nos regimes políticos dos países analisados, nesse período: embora não tenha sido detectada um retração da democracia, tampouco se pode afirmar que houve melhora nos níveis de democracia mundiais, sendo que o principal problema apontado pelo estudo é a baixa cultura democrática existente.
No ranking da The Economist, os três primeiros lugares são ocupados por Suécia, Noruega e Islândia. Os EUA estão em 18.º lugar, e, entre os países da América Latina, apenas dois figuram na categoria de democracia plena: Uruguai (em 23.º lugar) e Costa Rica (em 27.º). O 29.º lugar (entre os 167 Estados listados) é ocupado pela Itália, que tem uma “nota” que a classifica como democracia falha, estrato no qual se encontra também o Brasil, embora em 41.º lugar. Finalmente, o ranking aponta como os três países mais autoritários da lista os regimes políticos da Coreia do Norte (167.º lugar), Chade (166.º) e Turcomenistão (165.º).
Na análise da The Economist, o Brasil é bem cotado em elementos como “processo eleitoral” e “pluralismo”, assim como na garantia de liberdades civis (direitos de expressão, crença, locomoção, prosperidade, etc), todos quesitos formais da teoria democrática. Por outro lado, a participação social é o principal elemento que compromete o desempenho do país no cálculo da média que o classifica.
Uma democracia falha, na acepção da revista, é aquela que não está ainda totalmente consolidada: ainda que haja uma estrutura institucional democrática e um sistema aberto (pense, por exemplo, nos conselhos municipais que a Constituição de 1988 criou), a ausência de mecanismos de inclusão da população de baixa renda e as dificuldades relacionadas à melhoria dos níveis de escolaridade contribuem para a baixa participação social. A participação social, questão chave e um dos pilares da democracia, embora não se restrinja à pertença a partidos políticos e se estenda à participação em entidades diversas tais como associações ou clubes, está relacionada a eleitores mais politizados e a governos mais eficazes.
Fonte: Portal Educacional