Gaúcho e formação do Rio Grande

ASPECTOS DA FORMAÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL
E O SURGIMENTO DO GAÚCHO


JOSÉ AUGUSTO FIORIN*




O Rio Grande do Sul é geralmente considerado como ocupando uma posição singular em relação ao Brasil. Isso se deveria às suas características geográficas, à sua posição estratégica, à forma de seu povoamento, à sua economia e ao modo pelo qual se insere na história nacional. Apesar do estado ter uma grande diferenciação interna (do ponto de vista geográfico, étnico, econômico e de sua colonização), ele é freqüentemente contraposto como um todo ao resto do país.
Historicamente, um tema recorrente na relação do Rio Grande do Sul com o Brasil é justamente a tensão entre autonomia e integração. A ênfase nas peculiaridades do estado e a simultânea afirmação do pertencimento dele ao Brasil se constitui num dos principais suportes da construção social da identidade gaúcha que é constantemente atualizada, reposta e evocada.
A essa peculiaridade somar-se-ia uma história sui generis. Ela inicia com uma integração tardia ao resto do país. Assim, embora descoberto no começo do século XVI, o Rio Grande do Sul só começa a se articular às atividades econômicas do Brasil colonial mais de um século depois através da preia do gado xucro cujo objetivo era a exportação de couro para a Europa que era feita através de Buenos Aires ou Sacramento. É recém no final do século XVII que estes rebanhos ganham importância a nível nacional, pois passam a ter um mercado interno na florescente mineração da zona das Gerais, o que estimula paulistas e lagunistas a virem prear o gado xucro existente no Rio Grande do Sul e a levá-lo à área de mineração.
O objetivo da coroa portuguesa era, entretanto, o de “povoar as terras que iam do sul de São Vicente até a Colônia de Sacramento (fundada por ela em 1680) e nesse sentido o Rio Grande do Sul desempenhava uma função estratégica, como ponto de apoio para a conservação do domínio luso no Prata"[i]. Isto faz com que no começo do século XVIII a Coroa começasse a distribuir sesmarias aos tropeiros que se sedentarizaram e aos militares que se afazendaram, criando-se assim as estâncias de gado. Os conflitos militares em torno da Colônia de Sacramento e as disputas relativas à delimitação de fronteiras significou uma crescente militarização da região, que em 1760 foi elevada à condição de capitania com o nome de Capitania do Rio Grande de São Pedro.
A posição estratégica do Rio Grande do Sul faz com que ele seja visto como uma área limítrofe que estaria nas margens do Brasil e que poderia tanto fazer parte dele como de outros países dependendo do resultado das forças históricas em jogo. Somos uma fronteira. No século XVIII, quando soldados de Portugal e Espanha disputavam a posse definitiva deste então imenso deserto, tivemos de fazer a nossa opção: ficar com os portugueses ou com os castelhanos. Pagamos um pesado tributo de sofrimento e sangue para continuar deste lado da fronteira meridional do Brasil.
“Esse tipo de vida é responsável pelas tendências algo impetuosas que ficaram no inconsciente coletivo deste povo, e explica a nossa rudeza, a nossa às vezes desconcertante franqueza, o nosso hábito de falar alto, como quem grita ordens, dando não raro aos outros a impressão de que vivemos num permanente estado de cavalaria. A verdade, porém, é que nenhum dos heróis autênticos do Rio Grande que conheci, jamais proseou, jamais se gabou de qualquer ato de bravura seu. Os meus coestaduanos que, depois da vitória da Revolução de 1930, se tocaram para o Rio, fantasiados, e amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco - esses não eram gaúchos legítimos, mas paródias de opereta”[ii].
Nessa citação, Erico Verissimo evoca elementos que são recorrentes no discurso gaúcho. O primeiro é o caráter de fronteira de nosso estado. O segundo é a escolha: o Rio Grande preferiu fazer parte do Brasil quando poderia ter optado por pertencer ao antigo Império espanhol. O terceiro é o alto preço pago por essa opção e que é representado pelas guerras em que o estado esteve envolvido e pela necessidade de se insurgir contra o governo central quando se sente vítima de injustiças ou de intervir na política nacional em momentos de crise. O quarto elemento é a existência de um tipo social específico - o gaúcho - marcado pela bravura que é exigida do homem ao lidar com as forças da natureza e a árdua vida campeira. Finalmente, o quinto elemento toca na questão da autenticidade de costumes e comportamentos. Temos também a presença das mulheres que aparecem na condição de enlutadas. Elas comparecem nesse texto de forma indireta como a conseqüência da ação beligerante dos homens. Mas é a elas, na condição de órfãs, viúvas e mães que perderam seus filhos que caberá com freqüência assumir a responsabilidade de sustentar a família. Elas criam (dão à luz) enquanto os homens destroem (matam).
Dessa forma institui-se nessa sociedade um tipo social caracterizado com base nesse passado enaltecido como “heróico”. Com esse tipo de configuração é que Moysés Vellinho vai caracterizar e definir o gaúcho quanto a sua forma de ser, pois “se é verdade que o brasileiro do extremo sul descobre, na sua maneira de ser, características que o mostram em confronto com os filhos de outras regiões do país, como sendo representante de um tipo que se diria autônomo, produto imaginário de geração espontânea, não menos certo é que tais características não se moldaram ao arrepio das virtualidades originárias dos pioneiros (...) As tensões de uma fronteira duramente controvertida, em constante estado de guerra, mais a rudeza primitiva das lides campeiras, explicam as transformações responsáveis pela cunhagem do padrão social que vingou no Rio Grande sob o designativo regional de gaúcho”.[iii]
Porém, outro fator expressa de forma circunstancial o surgimento do gaúcho. Existem estudos que afirmam que o gaúcho surge quando o capitalismo surge no Rio Grande do Sul. Sérgius Gonzaga, esclarece que “as circunstâncias européias acabariam concedendo ao couro uma importância econômica fundamental durante o século XVIII, e os missionários – que a tudo tinham enfrentado – seriam esmagados por uma força superior. O capitalismo chegava ao Brasil meridional. Dependente arcaico, subsidiário, porém capitalismo com sede de lucro, extração de mais-valia e apropriação de riquezas”.[iv] Não obstante, ainda identifica, com relatos da época que “pouco se sabia desses indivíduos denominados gaudérios ou gaúchos. Sua origem residia tanto na dispersão das missões quanto no estupro das índias, prática corriqueira de bandeirantes e soldados. Eram tipos indiaticos, mestiços, raros e brancos. Haviam herdado dos guaranis a habilidade para a lide pastoril, a capacidade para montar, mas – na diáspora geral do mundo aborígine – perderam sua identidade. Tornando-se marginais. Segundo um administrador de fazenda uruguaia ‘no se sabe tegan outro exercício que andar de rancho em rancho y em lãs pulperias, embriagándose y después com el cuchillo em la mano peleando com todo el mundo”.[v] Na medida em que não se sujeitavam as regras do capitalismo, fazia-se indispensável desalojá-los de seu domínio e impunidade, evitando-se assim a rapinagem.
Nicolau Dreys em seu estudo descritivo sobre a Província destaca “sem chefes, nem leis, sem polícia, os gaúchos não têm da moral senão idéias vulgares e, sobretudo, uma sorte de probidade condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem lhe faz benefícios ou de quem os emprega ou neles deposita confiança”.[vi]
O que se depreende desse conjunto de elementos é um clima de adversidades que têm de ser constantemente enfrentadas. A necessidade de garantir fronteiras, dominar a natureza, rebelar-se contra os desmandos do governo central, além os conflitos internos do próprio estado, ajudariam a explicar o caráter um tanto fogoso que já teria se incorporado ao inconsciente coletivo gaúcho.
O tipo social do gaúcho constituído no transcorrer dos últimos séculos, pode-se referendar, como uma designação gentílica. Cabe ressaltar que este tipo constituído historicamente é totalmente diferenciado do tradicionalista, que por sua vez, através de um movimento doutrinário e saudosista tenta apregoar valores, padrões de comportamento e uma vivência histórica jamais vivida pelo verdadeiro gaúcho.
A constituição do Movimento Tradicionalista Gaúcho está direcionado em outro momento histórico. Paralelo a isso, há outro tipo social, com um novo tipo de sociedade (a industrial), em detrimento a sociedade estancieira. O conceituado historiador Eric Hobsbawn defende a idéia de que existem certas tradições que são inventadas. Nesse caso temos a tradição gaúcha, como elemento importante na reflexão de que se pertence ou não a esta categoria. “A invenção de uma tradição se dá em função de uma necessidade, sentida pelo grupo em relação à sua própria sobrevivência. Em face disso, a tradição inventada oscila entre o falso e o legítimo, não se podendo definir em absoluto qual seja sua essência mesma”.[vii]
Observando tal situação, Eric Hobsbawm considera que a necessidade sentida pelo grupo é o fator legitimante da tradição inventada, enquanto a intensidade de manipulação da mesma responde por seu menor ou maior falseamento. Para serem preservadas, “as tradições inventadas” – sobremodo, as tradições familiares – necessitam das máscaras sociais. E estas, para funcionar adequadamente, recorrem à mentira como peça essencial de seu mecanismo. Obviamente, a mentira, nesse caso, passa a ser algo cuja tessitura é bastante complexa, dada à sua intrincada urdidura.
As peculiaridades do Rio Grande do Sul contribuem para a construção de uma série de representações em torno dele que acabam adquirindo uma força quase mítica que as projeta até nossos dias e as fazem informar a ação e criar práticas no presente. Assim basta levantar o questionamento sobre o habitante do Rio Grande do Sul refletir de uma forma histórica e social sobre a questão: “Gaúcho ou tradicionalista? Tradição herdada ou inventada?”


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[i] PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1980, p. 13.
[ii] VERISSIMO, Erico. Um Romancista apresenta sua Terra. In: Rio Grande do Sul: Terra e Povo. Porto Alegre, Globo, 1969, p. 3-4.
[iii] VELLINHO, Moysés. Fronteira. Porto Alegre:Globo/UFRGS, 1973.
[iv] GONZAGA, Sérgius. As mentiras sobre o gaúcho: primeiras contribuições na literatura. In. RS: cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto,1990.
[v] IDEM.
[vi] DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre, IEL, 1961, p. 160.
[vii] HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. A Invenção das tradições. São Paulo:Paz e Terra, 1997.