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Atenção, letrados do Brasil: está lá fora um Coelho
Em artigo publicado no caderno Ilustríssima de ontem, Fernando Antonio Pinheiro, professor de sociologia da Universidade de São Paulo, retoma com convicção uma pauta de sucesso emergente entre certos acadêmicos: a tentativa de trazer Paulo Coelho (foto) para o “domínio culto da literatura”, do qual “o escritor mais lido no mundo” teria sido excluído numa operação em que “a desqualificação [é] ostentada como troféu pelas camadas letradas”.
Pinheiro recorre a um famoso ensaio do poeta José Paulo Paes sobre a incipiência da literatura de entretenimento no Brasil para dizer que Coelho é vítima de uma visão estreita e arbitrária do que cabe no campo literário, uma “definição literária do literário, típica do sistema brasileiro, que nega assento ao artesão competente no âmbito do entretenimento”.
O artigo começa com a aplicação de cascudos. Escritores que têm uma fração ínfima do sucesso comercial do autor de “O alquimista”, mas são considerados “sérios”, Milton Hatoum e Marçal Aquino teriam tratado Coelho como invisível ao falar da pouca repercussão internacional da literatura brasileira num debate de 2010. Isso, afirma o articulista, seria “bastante representativo dos contornos que ganharam aqui [no Brasil] as relações entre literatura e mercado”. Escreve Pinheiro que…
…os debatedores [Hatoum e Aquino] precisaram omitir um detalhe para sustentar seu diagnóstico. Trata-se do fato de que o escritor mais lido no mundo, cujas vendas já bateram a casa dos 100 milhões de exemplares em 150 países, traduzidos em 62 línguas, é o brasileiro Paulo Coelho. É provável que não se trate de esquecimento, mas da desconsideração pura e simples do pertencimento de Coelho ao domínio culto da literatura.
Em primeiro lugar, acredito que do ponto de vista da sociologia da cultura a universidade brasileira esteja mesmo em dívida com Paulo Coelho. No entanto, antes de saldá-la será recomendável erradicar qualquer traço do ufanismo que transparece numa afirmação de patente falsidade como a de que “o escritor mais lido no mundo… é o brasileiro Paulo Coelho”. Sem dúvida um peso-pesado da literatura comercial, levantamentos ponderados indicam que Coelho perde, apenas entre autores vivos, para Danielle Steel, J.K. Rowling, Jackie Collins, R.L. Stine, Dean Koontz, Stephen King, John Grisham e outros (lista completa aqui).
Quanto à arrogância da crítica literária, que seria típica das “camadas letradas” deste país afeito à lógica do privilégio e da exclusão – bem, é inegável que ela existe. Deve-se mesmo esquadrinhar de vez em quando o campo dos “excluídos” em busca de injustiças. Considerar as hierarquias estéticas tão próprias do Brasil quanto a jabuticaba, porém, induz o leitor ao erro. Além de ser redutor encarar a discussão interminável sobre critérios de valor na literatura como uma falha de caráter da nacionalidade, a premissa é falsa.
O americano Richard Bach tornou-se um fenômeno editorial avassalador quando lançou “Fernão Capelo Gaivota” em 1970. Não consta que tenha ocorrido a um único crítico americano julgar o autor daquele competente livro de “aprimoramento espiritual” com o mesmo metro dedicado a Saul Bellow. Nem que Bach tenha ficado magoado com a desigualdade do tratamento. Coelho fica, e andou externando essa mágoa em manifestações recentes como uma declaração de que é “o intelectual mais importante do Brasil” e uma crítica tão violenta quanto tola a James Joyce.
Não se trata de “naturalizar” a compartimentalização cultural que agrupa Hatoum com Bellow e Coelho com Bach. Apenas de registrar que é no inconformismo com essa divisão não exclusivamente brasileira que se inscrevem o artigo de Pinheiro e o conto que Coelho publica na mesma edição de Ilustríssima, intitulado “A tradução de Pierre Menard” – flerte com a dita alta literatura em que o narrador assume a voz de Jorge Luis Borges.
Esse inconformismo não brota do nada. Se por um lado é evidente que Hatoum e Coelho respondem a demandas radicalmente diferentes em aspectos como elaboração da linguagem, construção de personagens e tolerância ao lugar-comum, por outro lado a questão se complica. Faz tempo que o discurso acadêmico sobre literatura, dividido entre os estudos culturais e o desconstrucionismo, tem minado teoricamente os pressupostos da velha arte: ideologia à parte, não parece haver nada capaz de justificar que um texto seja considerado melhor ou mais literariamente valioso que outro. Claro que o leitor estabelece suas hierarquias, mas elas são comprometidas por todo tipo de condicionamento sociocultural e baseadas em opinião, orelhada.
Recentemente, alguns críticos de peso vêm tentando desesperadamente salvar o bebê (a própria literatura) da água suja do banho dos estudos literários. Como Terry Eagleton ao introduzir na receita uma medida de “bom senso”. Ou como Hans Ulrich Gumbrecht (comentado por Silviano Santiago no último Sabático, infelizmente sem link) ao tranferir para o “leitor não profissional” o arbítrio baseado na “experiência estética individual”.
Terá chegado a hora de dizer ao leão de chácara do “domínio culto da literatura” que Coelho pode entrar e ficar à vontade? Não creio, mas, como Gumbrecht, prefiro transferir a resposta à “experiência estética individual” e remeter o leitor ao conto “borgiano” de Paulo Coelho.
Fonte: Veja on line